A nova utopia desejada por Domenico de Masi



Assistindo recente entrevista de Domenico de Masi eu até esperava discordâncias de opinião, mas fiquei chocado com a quantidade de besteiras que um intelectual tão famoso, elogiado até por intelectuais brasileiros de esquerda, pode falar em poucos minutos. A proposta dele, absurda desde os métodos até o final, é uma nova utopia, que ele chama de “modelo”. De Masi parte de um pressuposto correto, a frase de Sêneca segundo o qual “não existe vento bom para o navegador que não sabe onde chegar”, mas daí ele pretende voltar às utopias. Ele constata, com razão, que a grande maioria da humanidade não sabe onde quer chegar, mas daí conclui que eles precisam de um “modelo” a atingir.

Até meados do século XIX utopias, ou seja, modelos de sociedades perfeitas, eram só o que a humanidade podia ter como objetivo para o futuro coletivo. A ciência ainda não tinha chegado aos assuntos humanos, mesmo porque pouco se sabia de história. A primeira tarefa da ciência para iluminar o futuro da humanidade foi descartar as utopias. Compreendeu-se que não pode existir um modelo, mesmo porque a humanidade não vai parar de se transformar e qualquer modelo é estático, mas também porque qualquer modelo inventado por seres humanos é simples demais, insuficiente, completamente desligado da realidade. Estudou-se a história da humanidade, descobriu-se as forças que realmente atuam significativamente nessa história, a saber, uma constante, que é o contínuo desenvolvimento das forças produtivas, e de uns 5 mil anos para cá a luta entre as classes sociais. Daí traçou-se um objetivo possível cientificamente, que é apressar o desenvolvimento da luta de classes e o desenvolvimento da forças produtivas, única coisa que realmente pode libertar a humanidade das trevas em que vive. Contudo, a existência de classes implica que muitas delas serão extintas e tal notícia não agrada essas classes, que assim negam os avanços científicos e voltam às utopias.

Para negar a ciência é necessário mergulhar na ignorância, e é o que Domenico parece ter feito. Começa por uma proposta absurda, que foi estudar 15 modelos de sociedade para encontrar o que é bom e o que é ruim nelas e daí poder imaginar um modelo perfeito para todo o mundo. Bom, qualquer historiador sabe que uma pessoa não pode estudar ao mesmo tempo 15 sociedades sem acabar por afirmar muitas besteiras, nem que o fizesse pela vida toda, mas ele só gastou 3 anos, segundo afirmou. Ademais, hoje a história tenta fugir aos modelos, ao menos em estudos sérios. Os modelos podem ser bons para ensinar estudantes de ensino médio, mas são sempre simplificações, e simplificações são sempre distorções. Ademais, um modelo é estático, e nenhuma sociedade fica imutável nem por um segundo. Ou seja, modelos servem para ensinar crianças, mas é um absurdo que um pensador se baseie em modelos. Pior ainda, ele afirmou que na história humana existiram no máximo uns 30 modelos!?!? Naturalmente, se modelos já são anacrônicos em si, porque o autor deixaria de ser anacrônico na proposta como um todo? Comparar 15 modelos de época e regiões completamente diferentes só pode ter sentido em uma mente pré-científica.

A nova utopia deseja por Domenico, pelo pouco que ele disse, já existe, é a ditadura do politicamente correto, e pior, politicamente correto para ocidentais, pois um intelectual chinês, ou russo, ou árabe etc. certamente teria outros posicionamentos, e nada dá aos ocidentais, uma gente que vira e meche queima livros e dá espetáculos de matança pública, o direito de impor sua utopia contra a utopia dos outros. Claro, se ele reconhecesse as classes sociais nem teria proposto chegar a um modelo, pois entenderia que de cada classe surgiria (na verdade surge) um modelo completamente diferente, modelos irreconciliáveis. Aliás, mesmo entre fracções de uma mesma classe social os modelos de sociedade não são conciliáveis. Diferentes segmentos da burguesia ou do proletariado têm utopias que se chocam com as utopias de outros setores da mesma classe. Mas para aceitar as classes sociais é necessária uma mente aberta à ciência, não servem medrosos.

Espera-se que alguém que defende tal proposta, estudar os modelos que existiram de sociedades para se chegar a um modelo ideal, ao menos conheça bem as sociedades que tenta simplificar em modelos, mas eis ai onde Domenico de Masi se desmascara. O Brasil é um desses 15 modelos, e ele revela ignorância enorme nos poucos parágrafos em que se referiu ao Brasil. Para ele o Brasil só fez uma guerra contra os vizinhos, a Guerra do Paraguai. Ou seja, ele desconhece as invasões brasileiras contra o Uruguai e a Argentina, assim como desconhece a guerra em que tomamos o Acre da Bolívia. Ele afirma que o Brasil foi inventado pelos intelectuais do século XX, entre os quais ele destaca FHC. Pode ser que o Brasil que ele “conhece” tenha sido inventado mesmo por esses intelectuais, mas o Brasil de verdade foi “inventado” por Getúlio Vargas, que se esforçou com grande autoritarismo por substituir as identidades estaduais por uma identidade nacional, chegando a proibir hinos e bandeiras estaduais, inventou que gostamos de futebol e de samba. Mas Domenico não citou Getúlio! Ele afirma também que a proibição dos teares foi fruto do tratado de Methuem, entre Inglaterra e Portugal, desconhecendo que entre esse tratado e a proibição dos teares passaram-se cerca de 70 anos. Para ele Niemeyer foi o primeiro arquiteto brasileiro a não copiar europeus, desconhecendo a originalidade do barroco mineiro e outros arquitetos.

Mas pode-se dizer que ele não tem obrigação de saber tanto sobre o Brasil, embora tenha, pois se atreveu a escrever um livro a respeito, contudo as provas de ignorância dele vão muito além, e chegam, ele sendo italiano, à Itália!

Na curta entrevista que assisti ele afirma que a Itália até pouco tempo só tinha italianos. Bom, nas memórias de vida dele pode até parecer assim, pois na Segunda Guerra os italianos ficaram admirados com os soldados negros, que nunca tinham visto, mas um pouco de estudo de história mostra que a Itália desde o mundo antigo recebeu enorme variedade de outros povos. Roma atraiu para a Itália escravos e homens livres das mais variadas etnias. Depois, na idade média, como centro religioso e comercial a Itália continuou sendo infestada de povos variados, para não contar as invasões estrangeiras. Maquiavel reclamava desses estrangeiros, que chamava de bárbaros, e até o século XIX a Itália continuou sob botas estrangeiras. O povo italiano é um povo mestiço, completamente mestiço, mas Domenico desconhece isso.

Ao explicar Roma para o entrevistador brasileiro, ele achou necessário explicar o que era a escravidão, como se os brasileiros não soubessem muito bem, e explicou que eram como os eletrodomésticos do passado. Depois dessa pérola, ao se referir à sociedade romana, desconheceu que sua base, seu eixo central, era a escravidão, e disse que essa sociedade vivia em torno das termas e dos teatros, tomando a aparência pelo conteúdo. Quando falou de César e de Augusto provou ainda mais estupidez, pois para ele César foi como um rei, e Augusto começou a governar um República e quando morreu Roma era um império. Quanta confusão! Isso vindo de um italiano de barba branca é de dar arrepios! Ambos viveram e morreram chamando Roma de República, e por mais de um século depois da morte de Augusto não havia um romano disposto a reconhecer a morte da República! Nós, hoje, compreendemos que César matou a República, e denominamos o período posterior a César, incluindo toda a vida de Augusto, como Império. Ou seja, podemos dizer que Augusto nasceu e morreu na República, se aceitarmos o que era oficial na época, ou podemos dizer que ele nasceu e viveu no Império, se aceitarmos o que só se pode ver na posteridade, mas Domenico errou de uma forma ou de outra.

Ao falar da história em geral ele afirmou que existem períodos de criatividade técnica e científica, e períodos de desenvolvimento humano, separando-os de forma muito arbitrária a meu ver, mas o pior é que entre os períodos de desenvolvimento humano ele incluiu as sociedades greco-romanas e a idade média... O que tem na cabeça essa besta? Ele citou dois dos períodos mais terríveis da história humana como períodos de desenvolvimento humano!?! As sociedades greco-romanas é que iniciaram milhares de anos de escravidão das mulheres, era o período em que os pais colocavam suas crianças recém nascidas no lixo ou as vendiam como escravas, e a idade média, ou das trevas, é o período em que mais pessoas foram assassinadas por supostas bruxarias e as pessoas tinham esquecido até os conceitos de higiene.

Fiquei realmente decepcionado. Domenico de Masi revelou-se uma farsa. É um representante e tanto da crise atual da intelectualidade ocidental, que acha que pode resistir à ciência assim como seus tataravôs tentaram várias vezes no passado. É certo que o marxismo um dia será superado, mas não por imbecis que tentam fingir que ele não existe. O marxismo, como qualquer área do conhecimento, só pode ser superado por aqueles que o estudam, e provavelmente só quando a sociedade já for outra, ou seja, quando a burguesia já estiver extinta.

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